Na contramão da Europa, Fiat deixa seus carros sem cor no Brasil

Fiat: na Itália, três tons de laranja e muitos outros coloridos; no Brasil, cinquenta tons de cinza. (Fiat/Divulgação)

Alguns meses atrás, uma decisão tomada pela Fiat na Europa chamou bastante atenção. Algumas pessoas acharam ela estranha; outras, detestaram; e tantas outras aplaudiram de pé a iniciativa da marca. A partir de então, a Fiat deixaria de vender carros da cor cinza nos mercados europeus.

A iniciativa, como compartilhei no Instagram do Três e Meio, não vale para o Brasil, de acordo com a assessoria de imprensa da marca. Na verdade, por aqui a situação é praticamente o oposto.

Na Itália, Oliver François, CEO global da marca Fiat, deu um banho de tinta laranja em um 600e cinza: bem diferente do Brasil. (Fiat/Divulgação)

Com o anúncio das novas linhas 2024 de seus modelos brasileiros, a Fiat trouxe importantes novidades para carros como Strada, Toro, Pulse e Fastback. Entre elas, porém, está a ausência de cores.

A Fiat Toro, que no passado já teve tons de marrom, vinho, verde e azul em seu portfólio, ainda é uma das únicas opções da marca a contar com dois tons “coloridos” em sua gama. A picape, hoje, pode ser adquirida nas cores Vermelho Colorado (sólido) e Azul Jazz (metálico) — esta, disponível apenas a partir da versão intermediária Volcano, já que as de entrada Endurance e Freedom não contam com a opção.

Fiat Toro, além do 500e, agora é o único modelo da gama brasileira a contar com duas opções de cores que não sejam branco, cinza ou preto. (Fiat/Divulgação)

Todas as outras cores disponíveis são variações de branco, cinza ou preto: Granite Crystal (cinza metálico), Preto Carbon (metálico), Prata Billet (metálico), Branco Polar (perolizado) e Cinza Sting (sólido especial).

Mas a situação fica ainda pior com os outros modelos da marca. Na maior parte da gama, como em Mobi, Argo, Cronos e Strada, a única cor que foge da paleta preta-e-branca é o Vermelho Montecarlo (sólido). As demais opções são: Preto Vulcano (sólido), Branco Banchisa (sólido), Cinza Silverstone (metálico) e Prata Bari (metálico). Parece até que voltamos à época do Ford T!

Fim de linha para o Azul Amalfi no Fiat Pulse chega a ser quase inexplicável. (Fiat/Divulgação)

Na linha 2024 do Pulse, a marca tomou a decisão de tirar de linha o belo Azul Amalfi, ou seja, a única cor além do Vermelho Montecarlo disponível em toda a gama da Fiat, além dos tons já citados da Toro ou do Verde Oceano do Fiat 500e, exclusivos desses modelos.

Até então, o Azul Amalfi era uma cor exclusiva do Pulse. Apesar da boa recepção, esse tom, introduzido no lançamento do SUV da Fiat, não foi levado a outros modelos da marca, a princípio porque pesquisas de mercado teriam indicado que isso não faria sentido.

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Outro caso peculiar é do Fiat Fastback, que, apesar do estilo todo ousado de SUV coupé, perdeu na linha 2024 a única cor que tinha disponível até então — o Vermelho Montecarlo. O tom era oferecido apenas na versão Limited Edition Powered by Abarth, que foi reposicionada neste ano/modelo e perdeu o apelo esportivo. Eis, então, o motivo para o vermelho ter sido limado. Ele só deve voltar a ser uma opção para o SUV na versão Abarth, prevista para chegar ao mercado até o fim do ano.

Os SUVs contam com uma opção extra de cinza (é cinza que não acaba mais!): o Cinza Strato (sólido especial), que tem o tom da moda e é popularmente descrito como “cor de cimento” ou “durepox”.

Mesmo sendo um carro de design ousado, o Fiat Fastback agora só tem opções de branco, cinza ou preto em sua gama. (Fiat/Divulgação)

Por que só cinza?

Todos sabemos que o público brasileiro é bastante conservador quando se fala de cor de carro. Um estudo divulgado em 2022 pela Axalta, uma das maiores fornecedoras mundiais de tintas líquidas e em pó, mostrou que na América do Sul 88% dos carros vendidos em 2021 foram das cores branco, cinza, prata ou preto.

A maioria dos consumidores opta por tons mais sóbrios pensando na hora da revenda. Existe um mito de que carros coloridos perdem mais valor ou então demoram para serem vendidos. É parcialmente verdade: dependendo da cor, a desvalorização pode ser considerável, mas em outros casos é praticamente desprezível. Quase sempre, as dificuldades se aplicam a tons muito exóticos, como o antigo Amarelo Citrus do Novo Uno (o famoso marca-texto).

Cores mais vendidas do mundo nos carros de algumas regiões do mundo em 2021. (Axalta)

Não é o caso, portanto, de uma cor como o Azul Amalfi ou mesmo o Vermelho Marsala que o Fiat Cronos ganhou em seu lançamento. Eram tons coloridos até que bastante sóbrios, e por isso não foram tão rejeitados pelo público. De nada adiantou: além de não oferecê-los em outros modelos, a Fiat os tirou de linha sem dó nem piedade.

Ter as opções neutras, sem cor, ajuda a marca a ter maior agilidade na linha de montagem. Como a maioria do público não rejeita essas opções, a Fiat pode adiantar a produção de unidades com essas tonalidades; já os pedidos por cores específicas acabam interrompendo o ritmo de produção.

Além disso, a demanda por tons neutros, pelos motivos já elencados, é mesmo naturalmente maior. Logo, é uma decisão racional ofertar apenas tons acromáticos.

Assim como o Fiat Pulse, o Fiat Cronos perdeu a cor perolizada Vermelho Marsala, lançada com o sedã em 2018. (Fiat/Divulgação)

E qual o problema?

A grande questão é que a Fiat, apesar de não ter o mesmo posicionamento que tem na Europa, se diz uma marca “alegre, pop, colorida, espontânea” também aqui na América do Sul. Além disso, prega ser uma marca italiana e quente, que vibra energia e paixão.

Para justificar sua decisão na Europa, a Fiat disse que a Itália é o país das cores e que, portanto, sendo italiana, a marca quer que seus veículos também sejam reconhecidos como os carros das cores — das cores inspiradas nas belezas italianas, inclusive.

Um discurso, portanto, muito mais coerente do que o visto no Brasil. Ainda que seja apenas uma estratégia de marketing. Por aqui, a gama feita de branco, preto e tons de cinza não condiz com o discurso de italianidade e mistura quente do Brasil.

No manifesto da Fiat, praticamente não tem cinza. (Fiat/Divulgação)

Mesmo no caso de cores que são relativamente bem recebidas pelo público, como o Azul Amalfi, a Fiat não investe na ampliação de sua oferta. A impressão que passa é que a marca não se esforça para mantê-las em catálogo.

Pensando em racionalizar a operação, ela deixa de atender a pouca — mas existente — demanda por tons coloridos, forçando uma parcela dos clientes a comprar um carro com pouca personalidade. Curiosamente, isso vai contra a ideia que a Fiat tanto prega de que seus carros são de estilo e personalidade únicos.

Também não faz jus ao seu passado, já que alguns anos atrás chegamos a ver dez, doze, quinze tons diferentes disponíveis em sua gama — e para quase todos os modelos. Se a Europa conta hoje com quatro opções de azul e três de laranja, por exemplo, antes também tínhamos no Brasil mais de uma opção de azul, vermelho ou amarelo.

Na Europa, Fiat conta com mais de um tom da mesma cor, como três opções de laranja. (Fiat/Divulgação)

Todo negócio precisa equilibrar filosofia e pragmatismo, isso é inegável. E não estou dizendo que a Fiat deveria ser radical a ponto de abolir o cinza como fez na Europa.

Mas é uma pena que, em seu principal mercado no mundo, a marca não esteja nem mesmo tentando atingir esse equilíbrio, quando muitas de suas rivais — até com posicionamento e modelos muito mais conservadores — estejam. Afinal, as poucas cores que existem além de branco, cinza e preto são eliminadas do catálogo após existirem com uma oferta já limitada.

Há muitas coisas que a Fiat da Europa, que parou no tempo, precisa aprender com a Fiat do Brasil. Mas, em termos de cores, podemos definitivamente dizer que é a Fiat do Brasil que precisa aprender com a matriz.